Os problemas de saúde mental constituem hoje a principal causa de incapacidade e uma das mais importantes causas de morbilidade nas nossas sociedades, prevendo-se um agravamento nos próximos anos (OMS, 2001). As perturbações afectivo-emocionais, sobretudo as depressivas, são prevalentes em utentes de cuidados de saúde primários (CSP) estando sub-avaliadas e não tratadas (Wittchen et al., 2002; Pignone et al., 2002; MacMillan et al., 2005; WHO, 2006; Gusmão et al., 2005). A sintomatologia psiquiátrica é, muitas vezes, camuflada por sintomas somáticos (Fabião et al. 2008) que, no entanto, têm um importante papel na sua detecção (Barkow et al., 2004).
Num estudo desenvolvido em 15 cidades de vários países (Portugal não esteve representado) a prevalência da depressão foi 10.4 %, oscilando entre 2.6% e 29.5% e a da ansiedade generalizada de 7.9%, oscilando entre 0.9% e 22.6% (Goldberg & Lecrubier, 1995, cit. in WHO, 2001). Em Portugal, o estudo efectuado por Resina et al. (1989) num Cento de Saúde (CS) com uma amostra (n=927) identificou 50,9% de casos apresentando sintomatologia de depressão e/ou ansiedade. Outro estudo desenvolvido recentemente num CS de pequena dimensão (n=192) na Região Centro (Apóstolo et al., 2008) evidenciou que 50 a 62% dos indivíduos apresentavam um nível de stresse, de ansiedade e de depressão "normal" ou "leve", entre 16 e 21% "moderado" e entre 20 e 29% "severo" ou "extremamente severo".
Tendo em conta esta realidade, o objectivo central do projecto é caracterizar as perturbações afectivo-emocionais da população utente de CSP em Portugal, em termos de prevalência, comorbilidade, diferença entre géneros, relação com a idade, região de residência, situação na profissão e uso de medicação.
Este estudo será desenvolvido em dez CS, de nove regiões do país: Bragança, Porto, Coimbra, Évora, Faro, Madeira e 3 ilhas dos Açores (n=6611). Estes locais foram seleccionados por elegerem diferentes tipos de populações representativas do país: interior norte, litoral norte, litoral interior, interior sul, litoral sul e 4 ilhas das duas regiões autónomas. Para além disso, estas regiões representam zonas com altas, médias e baixas densidades populacionais, de acordo com o INE. Em cada região foi seleccionado o CS que abrangesse uma área urbana, de transição e rural. Em cada CS serão constituídos três tipos de amostra: 1) selecção de indivíduos inscritos nas diversas consultas dos diferentes centros de saúde na primeira semana dos meses de Abril e Outubro de 2011; 2) selecção de indivíduos, a partir da lista de inscritos, procurando abranger um grupo populacional que apesar de inscrito, não acede aos CSP; 3) selecção aleatória de 5% da amostra 1, à qual será feita uma entrevista com a Composite International Diagnostic 2.1 (CIDI) for Generalized Anxiety Disorder and Major Depression e aplicada a Depression Anxiety and Stress Scale (DASS-21). Os instrumentos a aplicar serão compostos por questões de natureza sócio-demográfica e clínica, pela DASS-21 na versão portuguesa já validada por elementos da equipa (Apóstolo, Mendes & Azeredo, 2006; Pais-Ribeiro, Honrado & Leal, 2004; Apóstolo, Mendes & Rodrigues, 2007), pela Positive and Negative Affect Schedule (PANAS) de Watson, Clark & Tellegen (1988), na versão portuguesa (Galinha e Pais-Ribeiro, 2005) e pela CIDI (WHO, 1990; Quintana et al., 2007).
Tendo em conta que não existem estudos epidemiológicos de base populacional com estas variáveis, particularmente em Portugal, como afirmado pela responsável da Direcção de Serviços de Psiquiatria e Saúde Mental da Direcção-Geral da Saúde, Ministério da Saúde, Maria João Heitor (Gusmão, Xavier, Heitor, et al. 2005), espera-se com este projecto traçar um perfil dos estados afectivoemocionais na população de utentes de CSP em Portugal e descrever a comorbilidade existente, bem como apontar valores-padrão para a população portuguesa, com base na versão portuguesa da DASS-21, disponibilizando instrumentos que poderão ser utilizados em futuros estudos epidemiológicos. A caracterização desta realidade permitirá, por fim, delinear uma estratégia de planeamento na área de saúde mental. Para além disso, este trabalho possibilitará a discussão científica, através da comunicação dos resultados, e a elaboração de um manual de boas práticas profissionais, de modo a poder ser divulgado junto de profissionais dos CS, políticos e investidores.
A evidência sugere maior susceptibilidade das mulheres para desenvolver perturbações afectivo-emocionais em relação aos homens (WHO, 2001; Kornstein et al., 2000; Angst, et al., 2002; Dew, Lynn & Hall, 2003; Apóstolo et al., 2008). Há também evidência de elevada comorbilidade entre depressão, ansiedade e stresse (Apóstolo et al., 2008) que pode ser explicada a partir do modelo tripartido da depressão e da ansiedade de Clark & Watson (1991) e evidência de relação com a idade, especialmente nos mais idosos (Gonçalves, Fagulha, Ferreira, 2005; van't Veer-Tazelaar et al., 2008)
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Com este projecto espera-se traçar um perfil dos estados afectivoemocionais na população de utentes de CSP em Portugal e descrever a comorbilidade existente, bem como apontar valores-padrão para a população portuguesa, com base na versão portuguesa da DASS-21, disponibilizando instrumentos que poderão ser utilizados em futuros estudos epidemiológicos.
A caracterização desta realidade permitirá, por fim, delinear uma estratégia de planeamento na área de saúde mental.
Para além disso, este trabalho possibilitará a discussão científica, através da comunicação dos resultados, e a elaboração de um manual de boas práticas profissionais, de modo a poder ser divulgado junto de profissionais dos CS, políticos e investidores.
01/01/2024
Self-care and health-disease